quinta-feira, 30 de abril de 2009

Abraão e a fé

Tenho lido a Bíblia de forma ordinal, de maneira que possa vencê-la toda em 1 ano. Ao chegar à história de Abraão e ler a saga épica do patriarca, impressionei-me. Não é à toa que é chamado de “pai da fé”. Passei a semana inteira pensando no quanto a fé é o elemento mais radical àquele que caminha na História.
Recorri à carta aos hebreus, precisamente o capítulo 11, também conhecido como “galeria da fé”. Encontrei a afirmação: “Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que deveria por herança; e partiu sem saber aonde ia” (Hb 11.8). Quando leio tal assertiva, imagino a figura do Abraão histórico, contingente. Segundo os próprios relatos bíblicos, o patriarca era imensamente abastado. Vivia em Ur dos caldeus, cidade encravada na Mesopotâmia. Possivelmente vivesse em clãs e tivesse uma condição econômica favorável. Isso fica evidente no episódio com Ló, seu sobrinho. Os dois estavam caminhando junto pelo deserto. A Bíblia informa que cada um teve que tomar o seu caminho por conta da quantidade de animais que possuíam. Era impossível os dois continuarem juntos. Cada um foi para o seu lado. Todavia, enquanto morava em Ur Abraão surgiu com a notícia amalucada de que necessitava partir para uma terra distante. Ao que indagaram:
- Abraão, onde fica essa terra?
Ao que ele respondeu:
- Não sei!
Tal afirmação quando julgada pelo bom senso constitui uma grande loucura. Ser senhor, rico, abastado, gozar dos privilégios inerentes à condição que se alcança com o resultado do próprio trabalho é motivo para uma alegria que surge de um senso de estabilidade. Não o foi para Abraão.
O velho Abraão, pois já havia passado dos 70 anos, ainda esclareceu que seria pai de uma grande nação. Todos sabiam que ele era casado com uma mulher infértil – Sara – e que já havia passado do tempo de gerar filhos. Alguns dos seus devem ter rido. A história dessa saga deve ter suscitado burburinhos, fofocas, especulações a respeito dos sentimentos incertos de Abraão.
“Partir sem saber para onde vai” é uma atitude impensada para o homem natural – empregando o termo paulino (1 Co 2.14). Não para o homem da fé. O homem da fé é desafiando a caminhar na História tateando o invisível. Mesmo não vendo, não apalpando o sonho que é apenas expectativa, o homem que caminha por fé, sabe para onde está indo. Ninguém entende as suas intenções, sonda-lhe os paços, todavia, as suas pegadas tem um destino certo.
Kierkegaard escreveu no seu livro Temor e Tremor que “a fé é o que sobra quando tudo acaba” e que o homem da fé é um “cavaleiro de esperança”. Nesse livro, o filósofo dinamarquês reflete o episódio de quando Abraão leva o seu filho Isaque, o filho da promessa, para ser imolado no monte Moriá.
O patriarca assim se constitui no modelo de substantivação da radicalidade da fé. Mesmo não vendo, mesmo caminhando sem destino aparente, os seus olhos estavam cheios de luzes e convicções fortalecidas. A incondicionalidade de sua fé era uma força que rechaçava as realidades físicas. Mesmo quando obedece a Deus com o fim de sacrificar Isaque, ele o faz por fé (Hb 11.17-19).
Por isso, paço a ser entendedor que mais que certezas, é preciso ter fé. É a fé que solidifica os paços, aplaina as convicções, motiva a caminhada para o destino certo.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: Segunda-feira, 06 de abril de 2009.

sábado, 18 de abril de 2009

Meditações - Luís Felipe Pondé

Achei em meus arquivos esta entrevista realizada pela Revista Cult com o filósofo Luís Felipe Pondé - mais uma vez sobre Blaise Pascal. O filósofo tinha como referência do sua epistemologia teológica a condição do homem perante o Infinito. Boa leitura!

(...) Ao contrário do que se propaga o senso comum, que distingue Pascal como um cientista que larga a razão para se dedicar à religião, a espiritualidade sempre esteve presente na vida de Pascal. Mas dói a partir de sua conversão ao jansenismo que a religião se tornou ainda mais evidente em sua obra.
O contato mais intenso de Pascal com a religião se dá por influência de sua irmã, que se tornara freira na abadia de Port-Royal. Além disso, algun fatos marcaram definitivamente o direcionamento espiritual na vida de Pascal, como a morte de seu pai e a “milagrosa” cura de sua sobrinha, que sofria de uma fístula lacrimal maligna. Essa recuperação ocorreu quando ela, desenganada pelos médicos, tocou o Santo Espinho que existia em Port-Royal. Entretanto, essa fase da vida de Pascal é rica em especulações. Para alguns, a sua conversação aconteceu quando escapou ileso de um acidente com uma charrete; para outros, o cientista abraçou a vocação religiosa após ter visões.
O fato é que a partir daí, em 1653, Pascal abandona seus trabalhos e estudos matemáticos para se voltar à teologia. Nesse período, seus textos apologéticos se direcionam para críticas aos jesuítas e a Descartes. Pascal achava que os jesuítas reduziam a religião a ritos e dogmas, sem se preocuparem com a reflexão metafísica. Estes escritos estão em Cartas Provinciais, um conjunto de dezoito cartas em defesa do jansenismo. Sobre Descartes, registrou: “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar sem Deus, mas não pode evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus”.
Para discutir a questão da influência do jansenismo na obra de Pascal e de como seu trabalho se opôs e se opõe ao pensamento cartesiano, a CULT conversou com Luís Felipe Pondé, filósofo e professor do Programa de Estudos Pós-graduados e Ciência da Religião da PUC-SP e de comunicação da Faap. Ele é o autor de O Homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana (2001), Conhecimento na Desgraça: ensaio de epistemologia pascaliana (2004), ambos pela Edusp, e de Crítica e Profecia: Filosofia da religião em Dostoievski (2003), pela Editora 34.

CULT – De que maneira a religião está presente na obra de Pascal antes de sua aproximação do pensamento jansenista?

Luís Felipe Pondé – É difícil falar em obra antes da aproximação com o jansenismo, porque mesmo em momentos iniciais, como sua perseguição ao clérigo Saint Ange (Jacques Forton, senhor de Saint-Ange-Montcard, com quem Pascal teve suas primeiras discussões teológicas), já há uma tendência agostiniana; se o jansenismo venceu em parte da comunidade intelectual cristã francesa do século 17, é porque já havia – inclusive por conta da sensibilidade calvinista forte na França, e o jansenismo é muito próximo do calvinismo em termos de espiritualidade – uma predisposição espiritual para tal. O Pascal importante é já jansenista, mesmo que o cientista e matemático já “brincasse” há muito tempo.

CULT – Talvez alguns dos conceitos mais “populares” de Pascal sejam os matemáticos. O senhor acha que esse lado do trabalho dele seja menor de o compararmos com sua herança para a filosofia?

L.F.P – Quero dizer que ele era tão bom em matemática que mesmo criança brincava com isso e assustava seu pai e seus amigos matemáticos e filósofos. De modo algum o Pascal matemático é menor, ele é fundamental em probabilidades, nas bases do cálculo infinitesimal, matrizes, geometria etc. Outra coisa: para ele isso era “brincadeira” porque tudo era divertissement (divertimento) para ele, mesmo a filosofia ou qualquer atividade intelectual. Lembre-se, segunda concupiscência, Agostinho, curiosidade vã do intelecto. Conta-se que quando ainda era criança seu pai o pegou deduzindo tudo o que se sabia da geometria euclidiana, e que ficou e, pânico com medo que o menino pirasse e proibiu seus amigos de falarem com ele para não piorar sua situação mental.

CULT – Como foi possível a ele promover uma conciliação entre sua obra antes e depois de sua conversão ao jansenismo?

L.F.P – Sua obra “posterior”, ou sua obra tout court, é um desdobramento que põe em diálogo a sensibilidade teológica jansenista com sua cultura filosófica e de ciências naturais e matemáticas; não acho um problema essa “conciliação”, porque não é a rigor uma “conciliação”, mas uma efetivação de uma obra que encontra na espiritualidade jansenista um campo para a crítica ao humanismo antropocêntrico. Quando ele escreve, ele já escreve como jansenista.

CULT – Como essas mudanças na vida e na obra de Pascal foram vistas por cientistas de seu tempo?

L.F.P – Muitos cientistas a sua volta partilhavam de atitudes religiosas semelhantes ou contrárias, mas ainda assim dentro do escopo religioso. É importante lembrar que controvérsias teológicas eram dadas dentro de ambientes filosóficos e científicos, muitos eram padres e não leigos como Pascal – na obra dele mesmo temos cartas e padres cientistas; o foco maior de disputa era a base teológica. Pascal era um cientista de sucesso em sua época, com sua pouca idade. Contudo, e isso é uma questão complexa para pouco tempo e espaço, é que sua teoria da ciência – ou sua epistemologia – é bastante avançada para sua época e aí está parte de sua crítica à lógica, geometria e físicas de cepa “fundacionalistas” ou essencialista de viés cartesiano. Sua lógica é muito mais formal e bem menos conteúdista, e muito mais de nomes do que de entes; a raiz disso é sua teologia agostiniana da insuficiência do homem em fazer algo além do que conhecimento local. Também entra aí sua crítica à linguagem, que é muito próximo às críticas neopragmáticas e wittgensteinianas. Mas no caso de Pascal, toda essa inconsistência cognitiva é fruto da desgraça teológica; sua ciência está dentro de sua teologia.

CULT – A questão da religião em Pascal o tornou uma espécie de “caso” na história da filosofia, por oposição a Descartes?

L.F.P – Não, Pascal não é quem é porque se opôs a Descartes. Inclusive para ele, este era “incerto e inútil”. A idéia nietzschiana de que Pascal era um grande moralista ( no sentido de um anatomista da alma e da moral), mas infelizmente atormentado pela religião, é típica dos reducionismos errados de Nietzsche e de autores similares ao que poderíamos chamar de um intelecto religioso como o do Pascal. A religião em Pascal é o centro de sua preocupação, e daí que parte sua antropologia, sua moral, sua política e sua espistemologia. Sua oposição teológica é ao humanismo de cepa renascentista do tipo “Pico de La Mirândola”. Descartes representa pouco nesse cenário. Para Pascal, Descartes era apenas um filósofo-cientista, que não sabia ao certo qual era o problema do ser humano, alguém que se divertia com objetos pouco produtivos em termos de salvação humana, leia-se, em termos de um aumento da consciência filosófica da condição humana. Pascal é uma ancestral do existencialismo e do pensamento da angústia. Para ele, Descartes era um ilustre e inteligente equivocado.

CULT – Foi ele o primeiro crítico da razão?


L.F.P – O termos “razão” é variável na história da filosofia. Pascal não é o primeiro crítico da “razão”, mas é o primeiro no período mais próximo a Descartes e, por ser matemático e cientista prático, sua crítica pesa muito.

CULT – O pensamento de Pascal consegue manter um diálogo com as questões contemporâneas?

L.F.P – Sim, muitas, não dá para falar delas aqui, mas seguramente com a lógica formal e axiomática, com o neopragmatismo, com o ceticismo, com descrença no ser humano, com o ceticismo político – críticas da democracia -, com a psicologia profunda de cepa freudiana – seu pessimismo com relação à estrutura psíquica humana e não à coisa sexual -, com crítica ao hedonismo materialista, à cultura da auto-estima – essa coisa brega que está virando objeto da academia – etc.

CULT – O senhor considera que a obra de Pascal é devidamente reconhecida nos dias de hoje?

L.F.P – Ela está em processo de reconhecimento. É uma obra difícil e pouco trabalhada no Brasil. Sua teologia dura e “anti-humanista”, pouco simpática ao humanismo hedonista de nossa época, tende a assustar as pessoas. Todavia, qualquer pessoa que gosta de pensar a condição humana a sério em Pascal tende a trabalhá-lo.

CULT – E em outros países, como é esse cenário?

L.F.P – Na França, evidentemente, é muito trabalhado. Fora de lá, Inglaterra um tanto. No Japão, há um scholar pascaliano. Não há nenhum trabalho que eu conheça importante publicado sobre Pascal fora da França. Seu pessimismo antropológico é que afasta muita gente dele e não sua matemática.

CURI, Fabiano (jornalista). Meditações. REVISTA CULT. Número 88, Ano VII, pp. 58-60.