sábado, 21 de fevereiro de 2009

Reflexões sobre o que fui e o que serei


Ás vezes parece que a vida se rarefaz na altitude

De existir no hoje com a lembrança do que se foi no ontem.

Parece que tenho dentro de mim a senha secreta

Da nostalgia do que já fui, mas perdi.

A vida sugestiona a amplidão dos séculos e me conduz

Aos dias da perfeição.

A lembrança dos dias do Paraíso-da-perfeição estabelece-se dentro de um quadro de imperfeição.

O imperfeito hoje, já vestiu-se de perfeição no passado.

Dizem: “o passado não conta”.

Para mim o passado conta e conta porque perdi o que tive

Para ganhar o que tenho.

O mais estarrecedor neste corte transversal de contingência

É a certeza de que o que tenho, causar saudades

Do que fui, mesmo sabendo que no que fui, terei ainda mais do que hoje sou.

O que fui não mais serei, porque do passado guardamos apenas a memória esfarelada do que fomos e do que se vivenciou.

Eu não estava lá jardim, mas era como se lá estivesse.

Eu não comi do fruto da proibição, mas parece que ainda sinto o seu gosto adocicado e o seu poder de me abrir os olhos.

Porque eu sou o Adão do hoje a lamentar pelo que não fui ontem.

Quando lá comeram o fruto, tornaram-se mais humano e menos humano.

Menos humano, porque perdeu-se a perfeição do projeto tracejado para ser-o-que-se-deveria-ser.

Mais humano, pois passou a se experimentar da outra humanidade alienada e ausentada da graça e sujeita à ira.

Era luta do tentar ser-quem-não-podia-ser, mas que se transformou em ser.

Mas o que me intriga é que essas coisas ainda voam dentro de da gente, no nosso eu-histórico-no-hoje,

Mesmo sabendo que eu não estava lá.

“Miserável homem que sou, quem me livrará do corpo desta morte?”

Não tenho o que tive para adquirir o que sou, mas ainda sinto saudades do que fui.

Parece que me fio dentro de uma roda gigante de confusão que me faz descer e subir nessa gangorra histórica, entre o que fui, o que sou e o que serei.

O que me impressiona é que agora eu tenho a graça, mas aquilo que é graça não dá crédito para mim e nisso ainda busco viver a promessa que me fizeram de

Que eu seria igual a Deus.

Se busquei ser igual a Deus, busquei me divorciar da submissão de ser-com-Deus.

Ser-com-Deus sugere submissão a Deus e curvar-se a Deus sugere viver-para-Deus.

Não quis me prostrar e nem curvar a Deus, porque eu quis ser igual a Deus.

Ainda hoje sinto o travor do que se tornou aquele fruto.

São coisas que sinto.

Me fiar no passado me faz sentir o cheiro do que tive mas perdi e ao mesmo tempo me puniciar por ser o que sou, esquecendo do que serei.

A promessa é graça.

Graça não confere crédito a mim, daí, me escondo em mim mesmo e me alimento do embelezamento do que fui e do que podia vir a ser.

O Éden está perdido, o labor, os cardos e os abrolhos provam isso;

A minha sede em ser o que fui e o meu lamento em perder o que prometeram que eu seria prova isso.

Mas eis que a limpeza foi feita na cruz.

Me prometeram um outro ser aonde eu-serei-o-que-planejaram-para-eu-ser, antes mesmo que eu deixasse de ser.

Lá a nostalgia acusadora é exorcizada e riscada dessa agenda que está inscrita em mim.

Eu serei mais do que sou, e nem por isso tornarei a ser o que sempre desejei ser, porque o que foi é passado e do passado só temos lembranças.

Então devo ignorar o passado?

O passado é apenas o que foi e o que não têm poder de, por si mesmo, transmudar-se em presente.

Afinal, o que foi não mais é.

O que é pode não vir a ser.

Mas o meu papel dentro do hoje histórico é ser-em-Cristo, porque ele tem as palavras da vida eterna.

Ele tem o que eu preciso, para viver o hoje, esquecer o que fui e me agarrar ao que serei.

Em Cristo há o escorrer do que já se foi e o renovar do que virei a ser.

Cristo em mim é a esperança da glória.

O que serei não pode ser roubado ou manchado pelos sonhos frustrados.

Pois Cristo me deu os seus sonhos.

O que eu era já foi.

O que conta é o que eu-sou-e-o-que-serei-em-Cristo.

Amém!

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 30/11/2003 13:42:41, domingo.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

De heldercamara@ceu.com para amigos e amigas

Queridos, estivesse entre vocês, a 7 de fevereiro comemoria 100 anos de idade. Quis o bom Deus, entretanto, antecipar-me a glória de desfrutar Sua visão beatífica. Aliás, o céu nada tem daquela imagem idílica que se faz na Terra. Nada de anjos harpistas e nuvens cor-de-rosa, embora a música de Bach tenha muita audiência.
Entrar na intimidade das três Pessoas divinas é viver em estado permanente de paixão. Arrebatado por tanto amor, o coração experimenta uma felicidade indescritível.
A propósito, outro dia, Buda, de quem sou vizinho, me contou esta parábola que bem traduz o caminho da felicidade: numa feira da Índia, entre tantos restos de frutas e legumes, uma mulher fitava detidamente o chão. Viram que procurava algo. Um e outro perguntaram o quê. “Uma agulha!” Não deram importância. Porém, quando ele acrescentou que se tratava de uma agulha de ouro, multiplicou o número dos que a auxiliavam na busca.
Súbito, um deles perguntou: “A senhora não tem ideia de que lado da feira a perdeu?” “Não foi aqui na feira”, respondeu a mulher, “perdi-a em casa”. Todos a olharam indignados. “Em casa? E vem procurar aqui fora?” A mulher fitou-os e retrucou: “Sim, como vocês procuram a felicidade nas coisas exteriores, mesmo sabendo que ela se encontra na vida interior”.
O céu é terno, o que não impede que experimentemos indignações. Jesus não fez a fome e a sede de justiça figurar entre as bem-aventuranças? Quando olho daqui para a Igreja Católica, confesso que sinto, não frustração, mas uma ponta de tristeza. O papa Bento XVI não transmite alegria e esperança. Faltam-lhe o profetismo de João XVIII e a empatia de João Paulo II.
Padres cantores atraem mais discípulos do que aqueles que se dedicam aos pobres, aos lavradores sem-terra, às crianças de rua, aos dependentes químicos. Nas showmissas, os templos ficam superlotados, enquanto nos seminários o ensino de filosofia e teologia costuma ser superficial.
A vida de oração não é estimulada, muitos buscam o sacerdócio para obter prestígio social e, por vezes, o moralismo predomina sobre a tolerância, o triunfalismo supera o espírito ecumênico. Até quando homossexuais serão discriminados por quem se considera discípulo de Jesus?
Alegra-me, porém, saber que as Comunidades Eclesiais de Base estão vivas e se preparam para realizar o seu décimo segundo encontro interclesial, em Rondônia, no próximo julho. Dou graças a Deus ao constatar que o Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) conta com mais de 100 mil núcleos espalhados pelo Brasil, intergrados por gente simples interessada em ler a Bíblia pela ótica libertadora.
Preocupa-me, entretanto a polêmica entre os irmãos Boff. Tanto Leonardo quando Clodovis são teólogos de sólida formação. Não considero justa a acusação feita por Clodovis de que a Teologia da Libertacão teria priorizado o pobre no lugar do Cristo. O próprio Evangelho nos mostra Cristo identificado com os probres, como ocorre na metáfora da salvação em Mateus 25.31-46.
Francisco de Assis, com quem sempre me entretenho em bons papos, lembra que sem referência ao pobre, sacramento vivo de Deus, Cristo corre o risco de virar um mero conceito devocional legitimador de um clericalismo que nada tem de evangélico ou profético.
Tenho dito a São Pedro que sonho com uma Igreja em que o celibato seja facultativo para os sacerdotes e as mulheres possam celebrar missa. Uma Igreja livre das amarras do capitalismo, e na qual os oprimidos se sintam em casa, alentados na busca de justiça e paz.
Quanto ao mundo, lamento que a fome, por cuja erradicação tanto lutei, ainda perdure, ameaçando a vida de 950 milhões de pessoas causando s morte de cerca de 23 mil pessoas por dia, a maioria crianças.
Por que tantos gastos em formas de ceifar vidas, como armamentos, e o investimentos que degradam o meio ambiente, como pesticidas, desmatamentos irresponsáveis e cultivo de transgênicos? Por que tão poucos recursos para tornar o alimento – dom de Deus – acessível à mesa de todos os humanos?
Ao comemorarem meu centenário, lembrem-se dos princípios e objetivos que nortearam a minha vida. Malgrado calúnias e perseguições, vivi 91 anos felizes, pois jamais esqueci do que disse meu pai quando comuniquei a ele minha opção pela vida sacerdotal: “Filho, egoísmo e sacerdócio não podem andar juntos”.

Frei Betto, Correio Braziliense, Brasília, sexta-feira, 30 de janeiro de 2009. Caderno Opinião.